sexta-feira, julho 14, 2017

O espiritual no desenho em transformação

Quando, ainda em 2010, comecei a pensar no tema da minha tese de mestrado, foi duro encontrar o título, mas sabia o que queria: conciliar o desenho e a oração. 
O primeiro título era outro, talvez mais beato, mas a minha orientadora da tese guiou-me até ao "espiritual no desenho", dadas as pontes mais fáceis de fazer com outros autores.

Contudo, a minha proposta não tinha nada que ver com o que já havia sobre o tema. O meu mote era transformar passagens bíblicas em exercícios de desenho de observação e não se encontrava nada sobre o assunto em lado nenhum. Fui falar com o P. Tolentino Mendonça e tivemos uma das conversas mais bonitas que me lembro. Ofereceu-se para ser meu co-orientador, mas o tempo e a alta ocupação dele não nos permitiram ir avançando juntos. Organizei, então, o primeiro retiro de diários gráficos, em Vila Viçosa, 2011. Era suposto ser só aquele, mas a aventura mostrou-se muito maior do que imaginava...

Agora, sete anos depois, e muitos retiros de diários gráficos organizados, alguns com o P. Nuno Branco sj, chegou-me uma surpresa à caixa de e-mail: um jesuíta e três companheiras vão pegar nos exercícios espirituais e propor que se desenhe a partir deles.

É curioso ver algo que iniciei a ser transformado, a ser pegado por outras pessoas que lhe vêem mérito e dão um novo rumo.

Eu por cá, continuarei a organizar, apenas, retiros de diários gráficos...


quinta-feira, julho 13, 2017

Florence: Duomo


Tenho-me sentido esmagado por várias coisas, ultimamente. 
Burocracia.
Pessoas talentosas.
Cidades maravilhosas.
Arquitectura. Design. Desenho. Filmes.
Pensadores.

Sinto que tudo o que me rodeia é incrível. Cada esquina ou detalhe, até aqueles que ninguém repara. Parece que estamos a atingir um ponto de qualidade tal que não deixa antecipar o que aí vem...

Mas cada vez me sinto mais esmagado pela história da humanidade. O nosso passado. As raízes...
Estar num lugar destes com mais de 500 anos e sentir que já foi pisado e observado por gerações atrás de gerações coloca-me no devido lugar. Remete-me para a minha pequenez e dá-me uma lição de humildade...

Sentei-me e pus-me a desenhar.
Qual David perante Golias.
Qual formiga perante o elefante.
Qual desconhecido perante a cúpula do Brunelleschi.

E levei um murro no estômago. E fui ao tapete...

segunda-feira, julho 10, 2017

Florence: La Specola


O Museu de História Natural de Florença era uma das prioridades na nossa estadia na cidade.
Criado em 1775, foi um dos primeiros do género a abrir na Europa. 
Sabíamos que não estaria muito cheio, pois a massa de turistas dirige-se a 3 centros incontornáveis: Duomo, Uffizi e Accademia. 

É engraçado como na escola, a ciência e os estudos da biologia e geologia ganham tanto protagonismo sobre todas as outras disciplinas. Depois, numa cidade como Florença (e em tantas outras), o museu de história natural está deserto quando comparado com os de Arte.

A minha opção, enquanto desenhava, era escolher alguns dos animais mais estranhos e raros, um por sala. No final, já com o Matias a dormir, sentei-me no chão e desenhei os armários ao fundo.
Deu corpo ao todo. 
Somos assim, precisamos de prateleiras para arrumar assuntos.
Às vezes teimamos em deixá-los lá arrumados, mesmo quando é urgente tirar tudo cá para fora!

sábado, julho 01, 2017

Florence: Palazzo Vecchio



Filas e filas de pessoas esperam a sua vez para entrar nas Galerias Uffizi. 
A observar essa multidão de gente a querer ver arte em abundância, sobretudo da Idade Média e do Renascimento, estão estas esculturas de homenagem aos grandes mestres que trabalharam em Florença. Que loucura deve ter sido viver nessa época. 
Mas pergunto-me, não é também uma agitação viver nesta? 
A História da Humanidade esmaga-me...


A minha querida professora de História da Arte da FBAUL, Maria João Ortigão, disse uma vez na aula algo que nunca mais me esqueci:
No Renascimento, Florença era uma das cidades mais perigosas da Europa. Haviam muitos crimes na rua. Os Médici construíram passagens secretas para correrem menos riscos de vida. E onde estavam os maiores artistas da época (e mais tarde, do mundo)? Ali mesmo! O risco é o que nos dá um lugar na História.

E depois foi mais longe:
O que nos deixou Florença com todo o seu perigo? O Renascimento e um berço de artistas que revolucionaram a Arte
O que nos deixou a Suíça com a sua posição sempre isenta? Chocolates e canivetes.

Não tenho nada contra a Suíça, como é óbvio, mas acho a comparação muito conseguida!
Neste desenho do Palazzo Vecchio, revivi as suas palavras sobre uma Florença cheia de arte nas ruas, onde a cidade museu se impunha com orgulho.

Tenho saudades das aulas dela.
Tenho também saudades de estudar e de aprender com os grandes professores.

quarta-feira, junho 28, 2017

Florence: Piazza della S.S. Annunziata


O desejo de ir a Florença era muito antigo, mas desde há muito que não sabia quando seria essa viagem.
Este ano, quase por milagre, conseguimos tratar da logística necessária para, depois do retiro em Assis, irmos descansar para Florença.

Esta praça é uma das mais bonitas da cidade. Estudada por todos os amantes da arquitectura. Os motivos de interesse são tantos que me foquei na escultura equestre do mestre Giambologna (João de Bologna, embora nascido na Flandres), um dos maiores representantes do Maneirismo.

O Matias estava na cadeirinha.
Tirámos o caderno dele e os lápis.
Durante 20 minutos desenhámos os três.
Depois, quando eu já tinha o desenho da escultura do Medici Fernando I feito, fui passear com o Matias, enquanto a Ketta terminava o dela.
Depois, trocámos de papel e dediquei-me ao casario com a cúpula da Duomo ao fundo.
Desenho feito a dois tempos e em pé.

Começa assim a minha viagem por Florença: a dois tempos. Vivo este agora, em frente ao computador dois meses depois, mas revivo cada desenho feito lá com mais sumo. Como que com uma visão do cimo do cavalo, lá de cima, mais arejada e a um ritmo que não é humano, mas animalesco, seja a galope, trote ou outro.

Mas acho que desenhar em Florença me deixa a galope...

sábado, junho 17, 2017

Assis: ícones medievais

O Retiro de diários gráficos em Assis começou com a cópia de um ícone medieval:


A arte aprende-se pouco a pouco e parte por parte. Para a arte da pintura é fundamental a composição das cores, depois a atenção à sua mistura. Preocupa-te com isso e sê exacto até aos limites extremos, para que aquilo que pintares seja livremente ornamentado e espontaneamente criado. Depois, a prática da arte ser-te-á facilitada pela experiência de muitos artífices de talento.
Tratadística Medieval - Padre Teófilo (séc. XII)

Na Idade Média, a preocupação do pintor era a construção das cores e a sua composição. O desenho quase não é alvo de pensamento - ele aprende-se com a experiência, isto é, com a prática.
A imagem criada obedecia a regras geométricas específicas. Só a cor é que tinha mais liberdade. Era mais importante o que ela representava do que a sua forma. Mais importante que representar um Cristo próximo dos traços faciais que ele teria tido (tarefa mesmo impossível), era ter um "protótipo do que a imagem representa".
Engraçado como, tantos séculos depois, tudo isto continua a fazer sentido...


No último dia do Retiro de diários gráficos, fizemos outra cópia, mas agora da única representação feita em vida (e ao vivo, por observação) de São Francisco, identificado apenas como Fr Franciscvs:


Trata-se de um fresco, pintado no interior do Mosteiro Beneditino de Subiaco (perto de Roma), antes de 1224. Francisco foi duas vezes a Roma, pelo que faz bastante sentido que possa ter ficado hospedado neste mosteiro, tendo sido pintado por um dos monges beneditinos. 

No séc. XIII, as regras da Pintura na Idade Média ainda estavam bem definidas, mas aqui, a geometria circular dos ícones não existe. O original tem bastante cor, mas o exercício implicava deixá-lo apenas com a linha preta. A cor, essa, ficaria para colocar depois, com a influência de vida franciscana...

Em Assis há muitas imagens de São Francisco por todo o lado. Esta, para mim a mais bonita de todas, a mais humana e cativante, curiosamente, não se encontra em lado nenhum.


Todos os retiros de diários gráficos são especiais, mas este em Assis foi verdadeiramente inigualável.
Venha o próximo!

quinta-feira, junho 15, 2017

Assis: São Rufino, Santa Clara e São Francisco

Existem três grandes templos em Assis: a catedral e duas basílicas. A catedral de São Rufino é a mais antiga e com um peso histórico significativo. Foi lá que S. Francisco e Santa Clara foram baptizados. Foi também lá que Clara descobriu a sua vocação religiosa, depois de ouvir um discurso de Francisco.


Em cima, à esquerda, a catedral de São Rufino. À direita, a basílica de Santa Clara. 
Em baixo, a basílica de São Francisco, património UNESCO.


Esta história dos três templos põe-me a pensar: na minha vida e história pessoal, o que será que marca as opções que faço hoje? Será que as integro tão bem como estas duas basílicas que parecem mergulhar e fundir-se na paisagem?

Só sabendo onde estão os alicerces se torna possível aventurar-me por paisagens desconhecidas. E que aventura...

domingo, junho 11, 2017

Assis: a regra franciscana


Criamos regras para nos organizarmos, mas há sempre quem prefira furá-las.
A regra franciscana é fortíssima. Têm o voto de pobreza mais radical.

Neste exercício, tentámos compreender como as regras são difíceis de cumprir, mesmo quando são claras. 
O trabalho do arquitecto Alejandro Aravena serviu também de inspiração.
Cada um devia começar com uma mancha de cor e uma área especifica ocupada. Os outros deviam seguir a regra. Eu fiz aquele laranja em cima do lado esquerdo. A quarta pessoa a reproduzir a regra, quebrou-a.
Depois, o desafio era (como é sempre), tentar unir os cacos.

É assim a nossa sociedade: tenta, tenta e tenta, mas nós somos mesmo únicos e irrepetíveis. 
A regra ajuda-nos também a entender isso.

quinta-feira, junho 08, 2017

Assis: casa franciscana


Da casa das irmãs franciscanas onde dormíamos, todas as vistas eram bonitas. Esta, da varanda da cozinha, foi-nos oferecida por elas, depois de verem os nossos cadernos. 

Claro que o desenho não mostra a beleza do lugar, claro que não, mas isso não interessa nada. É como os actos. Nem sempre mostram a beleza da sua motivação.


Mas se da varanda se via a paisagem e outras varandas do casario que mostram a vida quotidiana de quem lá vive, no rés do chão, havia a capela mais antiga de Assis: a Chiesetta San Giacomo de Muro Rupto, datada de 1088. 
Uma nave central com um transepto que mostra a antiga muralha da cidade (do lado esquerdo) e a capela das irmãs, do lado direito. A luz que entrava pelo vitral do altar mor era tão intensa que até doía.

Mais uma vez o desenho ficou aquém.
Ficamos sempre aquém, mesmo quando nos aproximamos muito.
Esse toque desejável leva-nos sempre a avançar, e é quando se avança que se percebe que se estava ainda com caminho por fazer...

domingo, junho 04, 2017

Assis: Chiesa Nuova


Hoje é dia de Pentecostes, mas publico um desenho do domingo de Ramos, o que antecede a semana santa e culmina com a condenação à morte e crucifixação de Jesus.

Esta Chiesa Nuova de Assis foi construída sobre a casa dos pais de São Francisco. Foi algures daqui que Francisco começou a atirar os panos valiosos do pai pela janela, oferecendo-os aos pobres. Depois disso, o pai tomou-o como louco e prendeu-o num pequeno cúbiculo dentro de casa. A mãe, com pena do filho (quem não teria?), soltou-o numa das viagens do pai a França para comprar mais tecidos.

Não vou agora debruçar-me sobre o exercício criado no retiro para esta manhã, mas o desafio era como mostrar a simplicidade de algo complexo. Temos tendência para complicar tudo, até as coisas simples, mas há pessoas que conseguem o oposto: simplificar até o mais difícil de entender.

sexta-feira, junho 02, 2017

Assis: Basílica de S. Francisco


Não sei se é do final do ano letivo e se ando demasiado cansado, mas cada vez me questiono mais sobre a impossibilidade de partilhar conhecimento com quem não o quer receber. Parece-me que este sistema de querer ensinar coisas a quem não as quer aprender está em falência...

Dou-me conta que a verdadeira passagem de conhecimento é informal. Mesmo numa aula séria, é a informalidade da curiosidade genuina de alunos e professores que permite que se aprenda.

Enquanto desenhava a Basílica inferior de São Francisco, pensava nas corporativas artísticas medievais e no modo como os aprendizes se juntavam aos mestres logo a partir de muito cedo, 10 ou 11 anos. Seria difícil ensinar-lhes naquele tempo?


Desci à cripta de São Francisco. 
Deambulei. 
Li tudo o que havia para ler.
Deixei-me impressionar pela esmagadora presença daquele túmulo de pedra.
Sentei-me sem fazer nada.
Depois tirei o caderno e comecei a desenhar.
Usei umas aguarelas novas que tinha partilhado com toda a gente. 
Fiquei com estas cores vermelhas. 
Quando se partilha assume-se isso mesmo e fica-se com o que sobra. 
Se é que sobra alguma coisa quando se partilha...


Pois ser professor é isto mesmo: ficar uma manta de retalhos sem nunca perder o conjunto.
Muito impressionante o hábito de S. Francisco. 
Ele foi um excelente professor porque deu o exemplo de como viver.
Foi bem radical, mas isto não vai lá com falinhas mansas. Há que acreditar no que se diz, e transformar isso em ações.


Anda turva a minha visão sobre a vida de professor.
Quanto mais me esforço, mais sinto que estou longe daquilo que deveria ser.
Dou o meu melhor. E mesmo assim nunca chega...

Abençoado fresco do Giotto, que me ajuda a entender que, às vezes, só um pequeno gesto pode aproximar dois mundos que teimam mostrar-se separados.

segunda-feira, maio 15, 2017

Assis: San Damiano

«Olha, filho, a mim também me parece duro em demasia o vosso viver sem nada possuir”» 
- Desabafou o bispo Guido a S. Francisco de Assis.


Saímos apenas de caderno na mão.
O objectivo era mendigar uma caneta, lápis ou outro material qualquer.
Pedir, mendigar, assumir que algo nos falta...
A referência era fortíssima: S. Francisco chamava a si a tarefa de mendigar comida. Quando ninguém lha dava dizia: "Terei o privilégio de jejuar".

"Que loucura!" - pensava eu enquanto lia a biografia dele. Como pode isto influenciar a preparação de exercícios de desenho?

Pedir custa. Assumimos todos isso. Queremo-nos fortes, sem medo de nada ou ninguém...
Colocarmos-nos numa situação de incerteza e fragilidade é algo que não vemos como valioso.
Confiar em alguém desconhecido nos pode ajudar é impensável nos nossos tempos.


A alegria que se gerou porque alguém nos deu uma caneta esferográfica foi surpreendente. 
Experimentar um sentimento de satisfação depois de um de despojamento foi, talvez, um dos pontos altos do retiro em Assis...


Caminhei até San Damiano, a famosa capela onde S. Francisco percebeu qual a sua missão e onde Santa Clara viveu depois até morrer.
Caminhei até lá sem mochila e material para desenhar, só com o caderno.
Quando lá cheguei, já todos tinham materiais para desenhar e estavam eufóricos.
Aproximei-me de um irmão franciscano e pedi-lhe uma caneta. Ele, atrapalhado, pediu-me para esperar e foi "lá dentro". Apareceu depois com uma daquelas esferográficas patrocinadas por uma empresa qualquer. Agradeci e disse-lhe que a devolvia no final.
Experimentei a caneta.
Falhava constantemente.
Também eu falho constantemente. Mais vale que o desenho mostre isso mesmo...

Perdi-me nas horas dentro da capela e desenhei apenas o sacrário (1.º desenho).

Aproximei-me do altar-mor para desenhar os frescos, mas foi o sacrário que voltou a ter destaque (2.º desenho).

No dormitório onde Santa Clara de Assis morreu, uma janela com degraus encadeou-me. Assistiu a tudo, ao longo deste séculos. Aponta lá para fora, degrau a degrau...

Saí, devolvi a caneta, não desenhei mais nessa manhã e tive o privilégio de não poder acrescentar mais nada a estas três páginas...

domingo, maio 14, 2017

Assis: radicalidade


E se largarmos todos os materiais que temos, tal como S. Francisco, e experimentarmos a radicalidade dessa opção?
Havia uma barra de grafite que me tinha sido oferecida há uns anos e estava intocável. 
Parti-a às lascas e partilhei-a entre todos. 
Sujava as mãos quando se lhe pegava.
Não se conseguia agarrar em condições, sequer.

Dali partimos em grupo para desenhar o tempo romano de Minerva, hoje igreja de Santa Maria sobre Minerva.


A exploração continuava. 
Quando nos sujeitamos ao que o outro nos dá, os resultados são sempre um mistério. Raramente o que esperamos. Abrem-se novas possibilidades e o milagre de novos resultados aparecerem no caderno presta-se a acontecer...


Aos poucos, vamos integrando a surpresa da novidade. 
Espaço para o chão e para o céu. A matéria fica no meio.

Depois de o controlar, havia que dar o passo seguinte:
Serei capaz de o integrar com o que eu já sei fazer?

A inspiração vinha do milagre da multiplicação dos pães e dos peixes. 
Dificilmente as pessoas não tinham mesmo nada que comer. 
Dificilmente não ficaram sensibilizadas pela partilha inicial de Jesus e dos discípulos.
De certeza que tiraram também o farnel que tinha levado e integraram-no com as pequenas porções recebidas pelos discípulos.


Má integração a minha. Deixei o que me ofereceram para o fim...
Usei a caneta e a aguarela e depois queria colocar o grafite da lasca.
Engraçado como é muito esta a postura com a diferença na vida. Queremos os territórios seguros. Primeiro eu e depois logo se vê se há espaço para o outro...


Nova tentativa. 
Forcei-me a integrar.
Arcadas grosseiras com lascas de grafite. 
Claro-escuro. 
Sentido de liberdade.
Aguarela.
Confusão e caos.

Como é difícil integrar a novidade na nossa vida, sobretudo quando a novidade é como uma lasca de alguma coisa. Parte mal partida, sem lado bonito, sem modo de lhe pegar.

Tanto caminho pela frente...
Tanto para crescer...

quarta-feira, maio 10, 2017

Assis: o esplendor

Tenho andado a ganhar coragem para escrever sobre Assis.
Todos me diziam que era uma cidade especial e eu sempre acreditei.
Acreditar sem ver é difícil e, por isso, lá fomos para Assis na Páscoa para a viver.


Foi o retiro que mais preparação exigiu de mim. 
Nem tive tempo de convidar o P. Nuno Branco. Os quartos eram duplos e, quando dei por mim, já não haviam mais lugares e ainda faltava quase um ano. Senti-me órfão por momentos. Quase trabalhamos juntos de olhos fechados. Como é que agora já não havia lugar?!?

Li um livro antigo sobre S. Francisco, oferecido por um grande amigo dos tempos da António Arroio. Às vezes penso: "como é possível que me tenham oferecido um livro sobre a vida de S. Francisco de Assis, enquanto estudava na António Arroio?"

Li, li e li. Entrei, mergulhei mesmo, na vida de S. Francisco. 
Tudo o que tinha imaginado fazer como exercícios foi transformado ao longo de meses de leituras.

S. Francisco nasceu numa família rica, experimentou a exuberância. Foi um príncipe da juventude. O pai trocou-lhe o nome de João para Francisco em honra dos negócios de tecidos que comprava em França e vendia em Itália. "Francesco" em italiano significa "o francês".

O primeiro passo a dar era experimentar também esse esplendor da riqueza. Desenhar com a liberdade total de escolhas. Mostrar a nossa riqueza no desenho...


Quando pensamos que a nossa riqueza é uma, eis que as voltas nos são trocadas.
Queria muito ter desenhado uma vista de um miradouro sobre a Basílica de S. Francisco (talvez para fazer pandã com o primeiro desenho).
Apareceu este siciliano de passagem por Assis.
Meteu conversa e não parámos de falar.
Crescia em mim o sentimento de frustração pelo tempo a passar sem fazer o desenho esplendoroso que queria fazer, até que me dei conta que o esplendor estava ali a falar comigo. 
"Não são as pedras que são esplendorosas, são as pessoas" - pensei...

Senti-me humilde ao relembrar a pergunta de Filipe: "Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta!"
Ele que estava ali com Jesus, não o conseguia ver...

Eu que estava ali com o siciliano, também não conseguia ver o esplendor.
Desenhei-o.
Respirei fundo e segui caminho.

domingo, abril 23, 2017

Roma: Piazza San Pietro


Hoje lê-se na missa a passagem do evangelho sobre Tomé. O tal que disse que só acreditava se visse e tocasse nas chagas. São muitas as pinturas que existem sobre ele e sobre o momento (quase seguinte) em que acredita.

Em Roma, na Praça de S. Pedro, em frente à Basílica e do lado esquerdo, está esta escultura de São Pedro. Do lado direito, uma outra de São Paulo. São Tomé está lá em cima, esculpido pelo Bernini. É o quarto a contar da esquerda.

Engraçado como para a história ficou (quase apenas) que São Tomé não estava em casa quando os outros estavam lá fechados e cheios de medo. Porque razão não tinha medo Tomé? Bom, dizem-nos os evangelhos que quando chegou a casa, os seus amigos estavam eufóricos por terem visto o Senhor. Tomé, que tinha estado fora, teve dúvidas. Na semana seguinte, Tomé já estava em casa e tudo se resolveu com a profissão de fé mais conhecida de todas: "meu Senhor e meu Deus".


O que me parece interessante notar é que Tomé arriscou sair de casa quando todos os outros ficaram lá dentro cheios de medo. Não sabemos bem porque saiu, mas que era arriscado, lá isso era.
Nesta praça de São Pedro, no Vaticano, São Pedro e São Paulo estão em destaque, no meio da praça, cá fora. Tomé está lá em cima, junto aos outros. A história tem destas coisas. O que não teve medo de sair à rua ficou na história como o que teve dúvidas.

Numa grande série que passou na televisão há uns tempos, perante esta fabulosa tela do Caravaggio, desenvolve-se esta conversa:
- He needed to touch Jesus wounds to be convinced.
- So, was he?
- Of course he was. We're all convinced sooner or later, Jack.


Esta é a cena completa. Saudades desta série maravilhosa...

quinta-feira, março 30, 2017

Roma: night walks


Há desenhos que vão ficando assim: amontoados. 

O primeiro foi aquele apontamento rápido em cima do lado esquerdo feito numa esquina do Portico d'Ottavio. Pensei que conseguia fazer alguma coisa enquanto o pessoal se despedia e discutia um local para almoçar, mas tudo se deu em um ou dois minutos...

O segundo foi feito enquanto esperava um risotto de espargos, numa esplanada da Piazza dele Cinque Scole com a caneta sépia. Demorou a vir e o desenho foi crescendo para espaços que não tinha previsto. Ficou lá em cima na página. O branco vazio do fundo tinha de ser ocupado depois, pensei eu...

O terceiro foi na Piazza di Pietra, do lado das imponentes colunas. Íamos a caminho da Fontana di Trevi e a Amber disse:
- Stop! This is part of the Adriano Temple. We must sketch this. Five minutes. Go!

O quarto e último foi na Fontana di Trevi. Estava frio. O romance estava no ar de alguns lá em baixo junto à água e o encanto no olhar de todos. Afastei-me e encostei-me a uma parede para desenhar. Entretanto passou uma carrinha de varrimento automático de rua e a vida banal romana cruzou-se ali com a vida floreada dos turistas. Ninguém deu pelo barulho a passar...

quinta-feira, março 23, 2017

Roma: Piazza del Campidoglio


Já fui a Roma 5 vezes.

A primeira foi em 2006 e praticamente não desenhei. Nem sei desses desenhos. Não os publiquei no blogue. Foi numa viagem de carrinha desde Lisboa que durou um mês...

A segunda foi em 2011 e, quando olho para esses desenhos, até fico envergonhado. Não tive muito tempo, mas, ainda assim, como é possível que, em 6 anos, o meu desenho melhorasse tanto? Espero daqui a 6 anos ter a mesma sensação...

A terceira foi em 2012 na única viagem que fiz. Foi nesse ano que levei os retiros de diários gráficos para Itália e me apaixonei ainda mais pela cidade. Publiquei também este post nos USkP sobre um dos exercícios do retiro.

A quarta foi em 2014. Fui lá com os meus alunos de Artes Visuais das Doroteias. Foi muito especial essa viagem. Ir a Roma como professor é uma tarefa quase impossível. Uma pessoa esfalfa-se toda, mas os desenhos ficarão sempre aquém do espírito da cidade...

A quinta foi este ano, 2017. Reunião de trabalho, tal como em 2011. Sinto que aproveitei melhor o pouco tempo que tive. Os desenhos, esses, vão sendo publicados com alguma reflexão e tempo, mas também fiz um resumo mais geral da viagem aqui.


Porquê este enquadramento todo?
Porque das cinco vezes, nunca tinha desenhado a Piazza del Campidoglio. Sempre fui lá. Sempre. Mas nunca a tinha desenhado...
Foi desta!

domingo, março 19, 2017

Roma: Largo di Torre Argentina


Cada vez me convenço mais que sou um apaixonado por História. 
Quando conheço algo novo, a primeira coisa que faço é ir investigar sobre o assunto, saber mais sobre ele, os pormenores, quando surgiu, factores de mudança, etc.

Acho que é por isso que Roma é a minha cidade preferida. Há uma certa decadência museológica ao ar livre que me põe o coração aos pulos para saber mais antes que tudo desapareça...

E desenhar estas ruínas in loco é como viajar no tempo. 
Entre investigações sobre o local, não há como falar com as pessoas de lá para descobrir que foi aqui mesmo, em 44 a.C. em frente ao Teatro de Pompeu (actualmente em ruínas), que o grande imperador Júlio César foi assassinado à facada...

Costumamos dizer: "ah, se estas paredes falassem..."
Imaginem se as ruínas de Roma pudessem falar...

domingo, março 12, 2017

São Roque

Estou a orientar, desde Outubro, um curso de desenho avançado em São Roque. Os alunos são desafiados a percorrer três módulos que são uma metáfora cronológica da vida do santo, desde o nascimento à sua morte, os tempos de culto e a zona expositiva da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.


O primeiro módulo focou-se apenas nos anos de vida de São Roque. A tinta da china diluída e desfocada servia de base para o aparo.


Não teve uma vida fácil o Santo. A determinado momento refugiou-se numa floresta para não pegar a peste a ninguém...


Pensei que ia desenhar mais com uma turma avançada e completamente autónoma no trabalho, mas a verdade é que é muito mais difícil partir a pedra conceptual do que a técnica. As ideias desenvolvem-se discutindo. Passei meses sem conseguir desenhar em São Roque até à semana passada onde o altar das relíquias e o trabalho do João Mega me serviram de inspiração. Sim, ele fez um desenho incrível a tinta da china assim parecido com este. E sim, é impossível não me sentir inspirado por um trabalho tão excelente como o que ele está a fazer lá em São Roque.


Como se não bastassem todas as segundas feiras à noite passadas em São Roque, na terça feira de Carnaval, lá estava eu de novo a desenhar.

Tem sido um curso incrível, com resultados muito inesperados. Amanhã faremos a última aula do segundo módulo e depois avançamos para a parte final do curso. Desafios ainda maiores esperam por nós...

segunda-feira, fevereiro 06, 2017

Liverpool Metropolitan Cathedral


Termino a publicação dos meus desenhos de Inglaterra com a Catedral de Liverpool.
Estava frio, era fim de tarde e já estava fechada.

É muito interessante aquela coroa arquitectónica ali atrás do bloco central. Faz-me lembrar a realeza das pessoas simples que, por mais que a queiram ocultar, não há forma de lhe taparem o brilho!

...

Tenho andado sem tempo. As solicitações são muitas e o tempo não estica.
Abrem dia 11 de fevereiro as inscrições para o 8.º Simpósio Internacional dos Urban Sketchers, em Chicago. Este ano, pela primeira vez, houve muito mais propostas de altíssima qualidade do que aquelas que poderíamos receber. Ficaram de fora workshops inacreditavelmente bons. É duro tomar decisões destas, muito duro. Sei o que o Simpósio USk significa para qualquer desenhador. É a experiência das experiências, é o top dos urban sketchers.

Senti-me, nos últimos dias, como aquele bloco de betão a ter de tapar coroas brilhantes que não são ocultáveis. Tentei escolher o mais que pude. Se no início eram 26 a selecionar, acabámos com 36, de tanta pressão que fiz para incluir o máximo de propostas excelentes. E, mesmo assim, ficaram de fora muitas outras boas.

Resta-me a esperança que todos os instrutores apresentem os workshops das suas cidades sob o USk Workshops Program. Todos merecem aprender com as propostas deles!

quinta-feira, janeiro 12, 2017

USk: 10 years x 10 classes


Em 2013, em Savannah, partilhei com o Gabi Campanario um sonho antigo: fazer um programa de formação, com o selo dos Urban Sketchers, que durasse mais do que um fim de semana. Teria de ser, pelo menos um semestre, algo com um fio condutor e com robustez. 
Partilhei ainda que via isso a acontecer para reforçar a origem dos Urban Sketchers: contar histórias com desenhos das cidades onde vivemos. Pequenas, médias e grandes histórias.

Tentei implementar o programa em 2013. Não consegui.
Tentei fazê-lo de novo em 2014 e não deu.
Deixei passar 2015 para repousar a ideia.
Em 2016 tudo se proporcionou para que a minha Equipa de Educação alinhasse nesta loucura.
Agora, em 2017, um programa de 10 aulas vai acontecer em 26 cidades (para já), no mundo inteiro, em todos os continentes!


Apetece-me comprar bilhetes de avião para estas cidades todas!

O programa de Lisboa pode ser visto aqui
Tenho a honra de ser formador ao lado dos grandes Nélson Paciência, Pedro Loureiro, José Louro e Guida Casella.
Lisboa está rubro!

Claro que este curso apoia diretamente os USk, como faço questão de fazer sempre.

sábado, janeiro 07, 2017

Job-talks: lecture at Gulbenkian


No dia 23 de janeiro vou falar da desmedida paixão que é trabalhar para os Urban Sketchers. O evento, organizado pela Forum Estudante, chama-se: JOBtalks.
A responsabilidade é muita, mas seria possível recusar um convite para ir falar daquilo que me enche os dias e me obriga a ir muito além do que algum dia imaginei?


Não me deram muito tempo para falar e, por isso mesmo, ainda não escolhi em definitivo o que vou dizer e mostrar, mas penso que irei contar duas histórias; uma sobre como alimentar a paixão nos outros e, outra, sobre como essa paixão se pode espalhar pelo mundo inteiro.

Curiosos? 
É para universitários ou recém licenciados/mestres/doutores 
(será que outras pessoas também podem ir?) 

Inscrições aqui.

domingo, janeiro 01, 2017

Ano ímpar é sempre bom!

Há uma certa vantagem em estar constantemente atrasado na publicação de desenhos. De alguma forma, eles ficam no caderno a ganhar corpo, longe da vista, e a deixar que as memórias mais insignificantes se apaguem lentamente...
Depois, quando abrimos o caderno, parece que um mundo novo se revela e apenas as memórias boas vêm ao de cima.



Liverpool, há cinco meses atrás.
Edifício simétrico bem ao estilo neoclássico, mas ficou a meio no meu caderno. Não houve tempo...


Liverpool, no mesmo dia.
Docas.
Sentei-me para beber um café. Paguei um balúrdio. 
A escultura equestre de Eduardo VII ficou assim de costas para o majestoso edifício do Porto de Liverpool.
Desenho muito rápido. Não havia tempo...


5 de agosto de 2016: o mesmo dia de há cinco meses atrás.
Edifício maravilhoso, bem arrojado.
Entrei e perdi-me a visitar a história da cidade. 
Desenhei rapidamente o esqueleto deste alce. Não houve tempo para mais...


E é assim que começo os posts de 2017: com desenhos do passado (são todos) e sem tempo nenhum.
Mas é assim que quero 2017 para mim: desenhos de momentos que teimam em escapar-me e sem tempo nenhum para os fazer. 
Porque parar é morrer, aprendi eu com o meu avô. 
Há que tentar que a areia não me escape tanto por entre os dedos.

Chegou um grande ano! 

sábado, dezembro 24, 2016

Como se desenha o Natal?


É isto o Natal.
Uma vista de dentro lá para fora.
Teimamos em olhar para as quatro paredes confortáveis quando lá fora é que reina o esplendor.
Sem abrir as portas ao que espera por nós, ficamos apenas com o desfocado imediato.
Há que dar o salto. Ousar olhar mais longe. Ainda que pareça impossível. Ou se sinta uma loucura a invadir-nos as veias. A pulsação a saltitar de incerteza...

É isto o Natal.
Dar vida nova. Nascer de novo.
Dar salvação ao que sonhamos há tanto tempo. Dar-lhe rosto focado, colocá-lo na luz. Deixar a sombra confortável e, com todas as fragilidades, deixá-lo amadurecer. 
Pequeno e incerto, mas muito promissor. Deverá ser assim o sonho que desejamos concretizar. Deixar que os outros falem dele, o elogiem, sem medo de o perder, porque, só sendo de todos, poderá ganhar o sentido pleno.

É isto o Natal. 
Só pode ser isto.

quarta-feira, dezembro 21, 2016

Lancaster Castle


Há uns anos, creio que ainda em 2014, o Nélson Paciência meteu-se num projecto de voluntariado bem interessante: fazer aulas de desenho com presos. Era necessária uma carta da associação USkP para oficializar o pedido e tornar os USkP parceiros das prisões. Fiz-lhe a carta, claro. Era também para essas situações que a associação existia. Falámos também de alguns exercícios que poderiam funcionar. Este foi um dos que lhe recomendei. Não sei se o chegou a usar.

No passado agosto, em Lancaster, Norte de Inglaterra, visitei o antigo castelo da cidade que tinha sido transformado em prisão. Funcionou assim durante décadas e, recentemente, foi recuperado como património da cidade e está aberto ao público. Se por fora impõe respeito pela construção, o pátio interior também é muito agradável. É, no entanto, de pasmar quando se olha para o interior dos espaços. Frios e com uma recuperação interior medonha, muito desgastados pelo uso, sem vontade nenhuma de os percorrer, acabei sentado no pátio a desenhar e a pensar no projecto do Nélson.

Coincidência ou não, a primeira vez que ele o apresentou em público foi também em Inglaterra, durante o Simpósio dos USk em Manchester. A conferência dele, que foi um sucesso, pode ser vista aqui.

Incrível como a vida de algumas pessoas passa tão rapidamente de um castelo fantástico, cheio de pompa e robustez, para uma prisão de onde não se pode sair.

Bem hajas Nélson, por teres levado o desenho como opção de viagem a quem só tem livre o pensamento.